Professor reconhece que há espaços do bolsonarismo que os progressistas não entendem e não ocupam, mas chama atenção para o florescer de uma juventude que não aceita misoginia, racismo e repressão
Por: João Vitor Santos, em IHU
“Estamos diante das eleições mais importantes da história do Brasil e das nossas vidas. É hora de levar a sério a máxima do otimismo da vontade e ir às ruas fazer campanha. É preciso ter esperança, energia e alegria, que a vitória virá”, diz Lucas Pedretti de Lima.
O otimismo de Lucas é sóbrio e com os pés cravados na realidade. “A forma pela qual essas vitórias se deram, com um crescimento muito radical nas últimas horas antes do pleito, é que deve acender um alerta sobre como há espaços em que a política está acontecendo hoje que nós não estamos tendo a capacidade de compreender – muito menos de adentrar”, afirma
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o professor analisa como nosso passado de ditadura e repressão tem se tornado um substrato de ódio que faz acender a chama da extrema-direita em pessoas de nosso cotidiano. Esse é um dos aspectos que traz para pensar como a política, especialmente no terreno nacional, está mudando. “A Nova República acabou. Seus valores, seus discursos, sua forma de fazer política, suas instituições. Todo aquele grande acordo costurado na transição da ditadura para a democracia ruiu”, constata.
É dessa mudança que emergem outras forças políticas, especialmente aquelas que pendem para a extrema-direita. “A ascensão de Bolsonaro e desse ‘bolsonarismo’ não pode ser devidamente compreendida sem que observemos como os setores historicamente privilegiados – homens, brancos, cis, heterossexuais, do sul e do sudeste – veem seu domínio simbolicamente ameaçado por figuras como, por exemplo, Marielle Franco. Nesse sentido, estamos diante de uma renovação dos perfis dominantes nos dois campos políticos”, analisa.
No entanto, Lucas vê nessa transformação um feixe de esperança, pois se surgem forças conservadoras e opressores contra a mudança, surgem também movimentos contrários. “Dessa eleição, emerge uma esquerda mais diversa, mais plural, com maior presença de mulheres e negros – especialmente de mulheres negras. Elegemos pessoas trans, indígenas e representantes de movimentos sociais como o MST e o MTST. Como tem destacado a deputada estadual eleita pelo PSOL/RJ Renata Souza, há um novo perfil político de lideranças da esquerda que vem surgindo”, completa.
Assim, no cotidiano de sala de aula de uma rede pública, Lucas encara de frente essas transformações que devem inspirar a todos. Para ele, isso é vívido no rosto de seus jovens alunos. “Para nossa juventude, os debates sobre raça e gênero, por exemplo, estão muito avançados. As meninas não aceitam mais comportamentos misóginos e machistas, os jovens negros não aceitam mais aquilo que até muito pouco tempo atrás seria considerado apenas ‘piada’”, conta. E não pense que não há contraditório, pois o professor identifica também em jovens uma adesão à extrema-direita. Porém, mais do que a tão falada doutrinação, Lucas vê nestes movimentos possibilidades de compreender a complexidade de nosso tempo. “Se você pergunta sobre os valores dessa juventude, em geral eles anunciam elementos que a esquerda é capaz de propor: solidariedade, respeito, diversidade, trabalho, justiça social. Mas, por uma série de razões, parte da juventude tem identificado no Bolsonaro alguns desses valores”, revela.
Lucas Pedretti Lima é doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – IESP/UERJ. Também é mestre em História Social da Cultura e graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. É professor de História no ensino básico na rede pública de Maricá-RJ. Colabora com a Comissão da Memória e da Verdade da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Foi pesquisador da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio) e do Instituto de Estudos de Religião – ISER. Edita o portal História da Ditadura, voltado à divulgação científica de pesquisas historiográficas sobre a ditadura brasileira.
Confira a entrevista.
IHU – Que mensagem as urnas nos deram nesse primeiro turno? O que ainda não compreendemos e precisamos impreterivelmente entender?
Lucas Pedretti Lima – As urnas nos deram muitas mensagens. Vou me permitir começar com a mais otimista delas. O ex-presidente Lula, mesmo depois de uma perseguição judicial implacável, depois de ser preso por mais de 500 dias para não poder concorrer nas eleições de 2018, depois de sofrer um massacre midiático nunca visto na história do país, teve mais votos que Bolsonaro, não levou no primeiro turno por menos de 2% dos votos e é o favorito para vencer a disputa presidencial.
Isso porque ele está concorrendo contra um candidato que ficou em campanha permanente por quatro anos, que cometeu uma quantidade inacreditável de crimes eleitorais, que está despejando bilhões e bilhões de reais para tentar obter dividendos eleitorais e que opera uma estrutura de produção de fake news e desinformação muito bem montada. Veja, não é irrelevante perceber isso. Isso nos leva a relativizar essa avaliação que tomou a grande imprensa e setores da militância de que Bolsonaro é o grande vencedor do primeiro turno.
Agora, dito isso, é preciso reconhecer que há elementos preocupantes do resultado eleitoral do primeiro turno. A vitória de candidatos de extrema-direita para o Senado e os resultados para os governos estaduais estão no centro do sentimento de decepção e frustração que tomou conta do nosso campo. E acho que a forma como essas vitórias aconteceram, com um crescimento muito radical nas últimas horas antes do pleito, é que deve acender um alerta sobre como há espaços em que a política está acontecendo hoje que nós não estamos tendo a capacidade de compreender – muito menos de adentrar. Quando digo “nós”, eu me refiro não só aos setores organizados da esquerda e do campo progressista, mas também aos próprios institutos de pesquisa, que saíram bastante questionados desse primeiro turno.
IHU – O maior vitorioso das urnas nesse primeiro turno foi o partido militar? Aliás, que partido e que militares são estes?
Lucas Pedretti Lima – Veja, o coronel da reserva Marcelo Pimentel, uma das vozes mais importantes no debate público hoje, exatamente por jogar luz sobre a questão dos militares, é quem atestou isto: o Partido Militar foi o vitorioso das urnas.
Considero um diagnóstico importante, com o qual tendo a concordar em partes. Eu vejo três grandes vitórias dos militares. A primeira é que as urnas comprovaram que eles conseguem realizar continuamente uma impressionante operação de limpeza de imagem e de desresponsabilização. A despeito da tragédia que representa a administração dos militares em praticamente qualquer área de política pública – e que ficou particularmente visível no caso da saúde –, a identificação de candidatos com patentes e símbolos militares segue sendo um ativo eleitoral forte. Caso exemplar é o do ex-ministro [Eduardo] Pazuello.
Diante disso, vem a segunda vitória: cresceu o número de militares (seja das Forças Armadas, seja os representantes de forças de segurança pública) eleitos. Do ponto de vista das Forças Armadas, isso significa uma ocupação crescente de cargos públicos e de militarização do Estado e da política, sem a necessidade de um golpe nos moldes clássicos.
E a terceira vitória está relacionada com todo o teatro montado em torno da questão das urnas e do Tribunal Superior Eleitoral – TSE. Os militares operam com chantagens e ameaças, explícitas ou veladas. Como saldo, eles aumentam o custo de qualquer tipo de conflito com as Forças Armadas, pensando especialmente na hipótese de eleição do Lula. Ou seja, eles conseguem articular uma espécie de anistia preventiva, um acordo por cima para garantir que não haverá nenhuma tentativa de responsabilizá-los.
Cenários e projeções
O cenário, portanto, parece ser mais ou menos o seguinte. Com a vitória de Lula, os militares conseguem construir uma imagem da tragédia que foi o governo militar de Jair Bolsonaro em que toda a culpa e responsabilidade dos danos feitos ao país recairão sobre a figura do presidente, e não sobre a instituição Forças Armadas. Daí, não serão questionados nem judicialmente, nem pela opinião pública. Enquanto isso, crescem sua bancada e aumentam a ocupação de espaços no aparelho de Estado, independentemente de quem está no Executivo.
No caso de um governo Bolsonaro II, o cenário é, evidentemente, de aprofundamento do autoritarismo e do rumo direto para a autocracia. O próprio [Hamilton] Mourão, que passou todo o governo Bolsonaro em meio a um teatro segundo o qual a relação dele com o presidente estava rompida, foi eleito Senador com apoio das redes “bolsonaristas” e agora já está falando explicitamente sobre os planos de aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal – STF a fim de impedir que a corte possa continuar sendo um dique de contenção ao avanço da extrema-direita.
IHU – Quais foram as armas que a extrema-direita nacional colocou em jogo nessa eleição?
Lucas Pedretti Lima – Todas as possíveis e imagináveis, o que tende a crescer neste segundo turno. Há um uso inacreditável da máquina do governo federal, com uma quantidade impressionante de crimes eleitorais sendo cometidos à luz do dia. A possibilidade de que Bolsonaro siga fazendo isso está na conta da leniência, tanto das instituições quanto da grande imprensa, com a extrema-direita. Mas há um conjunto de outras armas que têm a ver com a rede de comunicações operada por Bolsonaro e seus aliados, e que representam um desafio muito profundo para o campo progressista de modo específico e para a democracia de modo mais geral.
A forma pela qual essa extrema-direita global utiliza a tecnologia e os novos meios de comunicação não foi nem mesmo compreendida por nós. Há pesquisadores que têm se dedicado a isso, e devemos ouvir com atenção o que pessoas como Letícia Cesarino, Orlando Calheiros e Ronaldo Lemos, para citar apenas alguns, têm a dizer. As análises feitas por eles dos resultados do primeiro turno dão pistas importantes.
Quando eu falo que fake news é uma questão de desejo e não de ignorância eu falo disso. O desejo não é uma “escolha” consciente, mas ele jamais se engana. A coluna de hoje apela para o medo de golpe (que não é injustificado).
— Orlando Calheiros (Escutem o Cálice!) (@AnarcoFino) August 9, 2021
IHU – Como analisa os movimentos da esquerda nessa “nova forma de fazer política”?
Lucas Pedretti Lima – Na primeira pergunta, me permiti começar com um otimismo em relação à mensagem das urnas no tocante à votação do Lula. Mas este é um outro ponto a ser destacado. Dessa eleição, emerge uma esquerda mais diversa, mais plural, com maior presença de mulheres e negros – especialmente de mulheres negras. Elegemos pessoas trans, indígenas e representantes de movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST e o Movimentos dos Trabalhadores Sem-Teto – MTST. Como tem destacado a deputada estadual eleita pelo PSOL/RJ Renata Souza, terceira mais votada do estado, há um novo perfil político de lideranças da esquerda que vem surgindo.
E é diante da emergência desse novo perfil que se compreende melhor, também, a virulência do ataque da extrema-direita. A ascensão de Bolsonaro e desse “bolsonarismo” não pode ser devidamente compreendida sem que observemos como os setores historicamente privilegiados – homens, brancos, cis, heterossexuais, do sul e do sudeste – veem seu domínio simbolicamente ameaçado por figuras como, por exemplo, Marielle Franco. Nesse sentido, estamos diante de uma renovação dos perfis dominantes nos dois campos políticos, tanto à direita quanto à esquerda.
IHU – Qual sua leitura acerca da “banalidade do mal”, a partir de Hannah Arendt? Essa perspectiva é capaz de explicar os 43,2% de Brasil que referenda o governo de Jair Bolsonaro?
Lucas Pedretti Lima – Não sei se a ideia de “banalidade do mal” é a melhor para explicar o que estamos vivendo. É claro que, num primeiro momento, quando você observa que alguns dos mais incompetentes (no caso de Marcos Pontes, por exemplo) ou criminosos (no caso de Pazuello) integrantes do governo Bolsonaro foram premiados pelas urnas, pode parecer que há uma certa indiferença generalizada com o “mal”. Mas é muito mais importante pensarmos que esse mal não é banalizado, mas sim que ele fala ativamente com afetos, desejos e subjetividades de parcelas da sociedade.
Ao mesmo tempo, precisamos levar a sério o fato de que a extrema-direita é capaz de operar uma rede de comunicação que cria verdadeiras realidades alternativas. Ou seja, não se trata de achar que as pessoas são indiferentes a 700 mil mortes. Elas simplesmente não acreditam nessas 700 mortes, ou acreditam de verdade que Bolsonaro fez o que podia para salvar as pessoas. É claro que essa crença tem um viés: a pessoa acredita nas fake news mais escabrosas porque elas, de alguma maneira, confirmam crenças anteriores daquele sujeito. Assim, tem um circuito muito fechado aí, em que essas coisas se retroalimentam.
IHU – Como avalia a construção histórica da memória do fascismo e do nazismo que se manifesta agora no século XXI? Em que medida essa construção deixa brechas por onde brotam manifestações dessas correntes?
Lucas Pedretti Lima – O professor de história e historiador Fernando Pureza fez um fio no Twitter, cuja leitura eu fortemente recomendo.
Tem um lance que me pega nesse papo de “ai, vale tudo para destruir o fascismo?” que é justamente a memória histórica da primeira grande derrota do fascismo em escala global: a Segunda Guerra Mundial.
— Fernando L’Ouverture (@louverture1984) October 6, 2022
Ele mostra como passamos a entender a II Grande Guerra e a derrota do fascismo como uma “fábula moral”. Com isso, nos esquecemos da dimensão política da guerra. Fernando escreveu isso diante da suposta polêmica que emergiu recentemente sobre se “vale tudo para derrotar o fascismo?”
Eu chamo atenção para essa reflexão porque ela ajuda a entender que a construção de uma certa memória sobre Holocausto, que passou a ocupar o lugar de equivalente do mal absoluto nas sociedades ocidentais, é também uma construção política e histórica. Ou seja, ela sempre corre o risco de ser desfeita.
“Nunca Mais”
A ideia de “Nunca Mais” é um imperativo moral muito forte, mas é preciso uma construção cotidiana para que a extrema-direita siga sendo vista como uma ameaça. E temos visto que cada vez mais essa elaboração contínua de uma reflexão crítica sobre a extrema-direita foi dando lugar a uma normalização de sua atuação no espaço público.
Diante da crise do neoliberalismo, percebemos que o fascismo segue sendo visto, por parte das elites, como uma opção legítima para garantir a manutenção dos níveis brutais de expropriação. O que quero dizer é que não basta uma condenação abstrata à violência do passado: é preciso entender que as condições materiais que permitiram a emergência do fascismo seguem existindo, e é preciso enfrentar essas condições.
IHU – Você colabora na Comissão da Memória e da Verdade da UFRJ, já tendo trabalhado na Comissão da Verdade do Rio de Janeiro. Com base nessas experiências, considera que o Brasil conseguiu fazer o acerto com seu passado de ditadura e repressão?
Lucas Pedretti Lima – O Brasil não fez um acerto de contas com seus muitos passados de violência. Não falo apenas da ditadura militar, mas também do genocídio dos povos originários e dos trezentos anos de escravização. Isso porque, para conseguir manter o grau de violência e brutalidade que as elites deste país exercem sobre amplos setores da população, é necessário garantir uma construção ideológica tão profunda quanto. Daí nascem mitos como o da democracia racial – ou seja, a ideia de que as relações raciais no Brasil se deram historicamente de forma harmoniosa – e o de uma história sem violência e sem conflitos.
Essas duas noções estão no centro da leitura conservadora sobre a história do Brasil, e elas precisam ser reforçadas de maneira muito profunda, a todo momento, para não permitir que venha à tona toda a força do passado escravocrata, patriarcal, racista e autoritário que marca nossa história. Portanto, disputar o futuro do Brasil passa por disputar seu passado. Precisamos construir e reforçar novas narrativas sobre o que nos constitui enquanto nação.
É chamar atenção para a violência que marca nossa história, com o intuito de construir instrumentos que permitam que essas estruturas do passado não sigam se reproduzindo no presente. Precisamos derrubar, literal e metaforicamente, estátuas, mitos, símbolos que reproduzem a narrativa de um Brasil cuja história é pacífica e harmoniosa. E erguer novos monumentos para aquelas e aqueles que, ao longo dos séculos, pensaram outros projetos de nação – projetos mais democráticos, inclusivos, diversos, igualitários – e que, por conta disso, foram alvos dos que ainda hoje são considerados heróis.
IHU – Você pesquisou as ações da polícia política nas favelas do Rio de Janeiro no contexto da ditadura militar. Que relação podemos estabelecer com a lógica das milícias no Rio de Janeiro? Diante desse cenário atual, como conceitua a ideia de “polícia política”?
Lucas Pedretti Lima – Um dos principais legados da ditadura militar foi o modelo de segurança pública que faz com que nossas polícias matem e morram em números maiores do que de países em guerra. A ditadura alterou a arquitetura institucional da segurança pública de forma a gerar três consequências fundamentais para as polícias.
1) A primeira foi uma militarização brutal das polícias, simbolizada no surgimento de grupos de Choque e de Operações Especiais que originaram, por exemplo, o BOPE do Rio de Janeiro.
2) A segunda foi a constituição de mecanismos para garantir a impunidade completa dos agentes de segurança: desde aspectos administrativos, como os autos de resistência, até mudanças legais, como a determinação de que militares fossem julgados pela Justiça Militar, mesmo quando acusados de cometer crimes contra civis.
3) Por fim, a sustentação de um discurso de autorização e legitimação da violência do Estado.
Tudo isso ocorreu sob o manto da chamada doutrina da guerra revolucionária. Ou seja, supostamente eram mecanismos necessários para garantir a perseguição dos “inimigos”, dos “terroristas” e dos “subversivos”. No entanto, as forças de segurança, moldadas por essa lógica, não se restringiram a operar uma violência política contra opositores do regime. Pelo contrário, com os instrumentos da militarização, com a garantia da impunidade e com a autorização discursiva para a violência, explodiram os crimes cometidos por grupos paramilitares nas favelas e periferias das grandes cidades. Foi durante a ditadura que cresceram exponencialmente os grupos de extermínio e os esquadrões da morte, que estão na origem das atuais milícias.
A transição, que deu origem à Nova República, tratou de cuidar de parte do problema da violência de Estado. Sob o clima de abertura e redemocratização, uma série de mudanças, cujos símbolos fundamentais são a Lei de Anistia de 1979 e a Constituição de 1988, serviram para afirmar que, de modo geral, torturar, prender, censurar e assassinar opositores políticos não poderia mais ser legítimo. Ainda que isso tenha continuado ocorrendo em diversas regiões do país, esse novo pacto esteve na base do regime pós-1988.
Violência estatal sem enfrentamento
No entanto, o Estado e a sociedade não enfrentaram o problema da violência estatal que não se apresentava sob o signo da “violência política”. Censurar, prender, torturar e assassinar jovens negros das periferias e favelas seguiu sendo algo naturalizado e, cada vez mais, incentivado. Não à toa, nossa democracia tem como cartão de visitas uma série de chacinas no início dos anos 1990 – Acari, Vigário Geral, Carandiru, Eldorado dos Carajás, Candelária.
É impressionante que não tenhamos parado para questionar a ideia de que a democracia se consolidava no Brasil mesmo quando os índices de violência policial cresciam a cada ano. Até que chegamos ao golpe de 2016 e ao governo Bolsonaro, que conseguiram implodir as poucas garantias que a Constituição de 1988 fornecia. Como durante a ditadura, a violência socialmente autorizada e demandada extrapolou os setores que historicamente foram os alvos da violência do Estado. Parece que o caso emblemático, dessa passagem, é a brutal execução de Marielle Franco, quando as forças da extrema-direita miliciana falam, em alto e bom som, que seguirão matando.
IHU – Qual sua análise da reeleição de Claudio Castro, ainda em primeiro turno, no Rio de Janeiro?
Lucas Pedretti Lima – O Rio de Janeiro é muito complexo. Mas o fato incontornável é: saíram daqui alguns dos piores nomes da política nacional nas últimas décadas. A começar pela própria família Bolsonaro. Para lembrar de outro nome que também tem grande parcela de responsabilidade pelo que vivemos hoje, é preciso citar Eduardo Cunha.
Sobre a campanha propriamente dita, é preciso lembrar que Claudio Castro fez uma campanha com muito dinheiro, usando de forma muito radical a máquina do estado, contra uma esquerda que errou muito nas suas estratégias. Mas, mais do que discutir as particularidades do processo eleitoral de 2022, acho importante chamar atenção para um ponto. Segundo dados do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense – GENI/UFF, cerca de 30% do território do Rio é comandado por algum grupo armado, entre milícias e facções do tráfico. Ainda de acordo com o grupo, a dominação territorial das milícias cresceu quase 400% nos últimos dezesseis anos.
Não é possível deixar de fazer uma discussão séria sobre as consequências desse cenário a respeito da possibilidade de exercício de direitos civis e políticos básicos, que estão na base de qualquer definição de democracia. Entre eles, estão os direitos à livre expressão e o direito ao voto. É preciso colocar seriamente a questão: há democracia onde há milícia? A mim, parece que temos, ainda, muita dificuldade de reconhecer o significado real dessa dominação armada de parcelas significativas do território. E o pior de tudo é que o modelo do Rio de Janeiro parece estar sendo exportado, evidentemente com suas nuances, para o restante do país.
Uma eventual vitória de Bolsonaro nos levará ao lugar que o Bruno Paes Manso já caracterizou em seu livro: a uma república das milícias. Seria um amálgama muito particular de experiências autoritárias, como a da Hungria, com o domínio territorial armado por grupos paramilitares, como na Colômbia e no México.
IHU – Que Brasil você vê a partir da rede de ensino público de Maricá, onde atua?
Lucas Pedretti Lima – Mais uma vez, vou me permitir ser particularmente otimista – destoando, inclusive, da resposta anterior. Para nossa juventude, os debates sobre raça e gênero, por exemplo, estão muito avançados. As meninas não aceitam mais comportamentos misóginos e machistas, os jovens negros não aceitam mais aquilo que até muito pouco tempo atrás seria considerado apenas “piada”.
É claro que eu tenho alunos que se declaram bolsonaristas, mas mesmo com eles eu tenho um diálogo muito respeitoso e produtivo. Com eles, aprendo muito sobre como precisamos repensar essa questão das bolhas de comunicação. Porque há algo impressionante: se você pergunta sobre os valores dessa juventude, em geral eles anunciam elementos que a esquerda é capaz de propor: solidariedade, respeito, diversidade, trabalho, justiça social. Mas, por uma série de razões, parte da juventude tem identificado no Bolsonaro alguns desses valores.
IHU – Que perspectivas de futuro para o Brasil projeta a partir do período pós-eleições?
Lucas Pedretti Lima – Claro que são dois cenários muito distintos. Uma vitória de Bolsonaro nos levaria para um buraco do qual demoraremos muito tempo para sair. Um regime cada vez mais fechado, o aprofundamento das políticas ultraliberais, com a ampliação da miséria e da crise social, o solapamento definitivo dos últimos diques institucionais que buscaram conter, minimamente e de forma muito tímida, o avanço de Bolsonaro – como o STF e o Senado –, a formação de milícias armadas a serviço do projeto político de extrema-direita, a junção definitiva de valores ultrarreligiosos conservadores e as políticas públicas. Em síntese, a Constituição de 1988 seria jogada definitivamente no lixo. Acho que, a essa altura, ninguém pode dizer que é catastrofismo imaginar esse tipo de coisa no horizonte, no caso de uma vitória de Bolsonaro.
Por sua vez, a vitória de Lula nos daria condições de tentar construir uma transição para uma normalidade institucional mínima, capaz de segurar o avanço da extrema-direita. Na melhor das hipóteses, teremos um governo de centro, com algumas políticas de centro-esquerda e muitos acenos à centro-direita e à direita. Mas, se tivermos um governo capaz de atacar o problema da fome e do desemprego, capaz de retomar políticas de redistribuição de renda, e capaz de reconstruir a institucionalidade, um governo cujo resultado final seja o isolamento do fascismo e a repactuação do país em torno de uma agenda mínima de defesa da democracia e de redução das desigualdades, Lula já terá cumprido um papel histórico gigantesco.
Agora, independentemente de qual caminho seguiremos, o que me parece óbvio é que a Nova República acabou. Seus valores, seus discursos, sua forma de fazer política, suas instituições. Todo aquele grande acordo costurado na transição da ditadura para a democracia ruiu. O que está em jogo agora, portanto, é: qual será o regime que a ser construído no lugar do que outrora foi a Nova República?
IHU – Deseja acrescentar algo?
Lucas Pedretti Lima – Apenas convocar todas e todos a ir às ruas. Estamos diante das eleições mais importantes da história do Brasil e das nossas vidas. É hora de levar a sério a máxima do otimismo da vontade e ir às ruas fazer campanha. Daqui até o dia 30, não há espaço para o cansaço, para a frustração, para as análises pessimistas, para o clima de derrota. É preciso ter esperança, energia e alegria, que a vitória virá.
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Lucas Pedretti Lima. Foto: Arquivo pessoal